Páginas

setembro 25, 2025

O Grupo (2022)

 


Título original: The Group
Direção: William Higo
Sinopse: Um grupo de apoio a viciados é cercado por um misterioso atirador, com a intenção de puni-los por uma tragédia passada. Todos com algo a esconder, o grupo deve confrontar o seu passado comum para descobrir a verdade e permanecer vivo.


A sala onde se desenrola O Grupo funciona quase como um organismo – um espaço pequeno, já gasto pelo uso comunitário, que o diretor William Higo transforma em palco e campo de batalha emocional. A premissa é explícita e econômica: uma reunião de ajuda para dependentes é invadida por um homem à margem, cuja presença obriga os presentes a encarar segredos e culpas partilhadas. A economia de meios é o primeiro traço que define o filme: roteiro e mise-en-scène concentram-se no mínimo necessário para acender máximas tensões. Essa aposta no “bottle film” é ao mesmo tempo virtude e limitação; há momentos em que o confinamento cria uma claustrofobia dramática potente, e outros em que o próprio espaço se torna repetitivo, levando a um terceiro ato que, por vezes, parece resolver-se por via de digressões que não amplificam tudo aquilo que o filme prometera inicialmente. 

Tecnicamente, O Grupo merece atenção. A fotografia de Andrew Litt privilegia enquadramentos próximos e uma paleta dessaturada que corresponde ao tema: rostos e mãos marcadas pela vida, luz dura de plafons e janelas que mal aquecem a cena, sombras que comprimem o que os personagens não dizem. Litt evita ostentação e, nesse sentido, acerta ao sustentar o sentimento de ‘lugar real’ — é um cinema íntimo, quase documental em sua textura, que usa longas tomadas e movimentos contidos para construir tensão. A câmera, muitas vezes, não procura espetacularizar o horror da situação; prefere perscrutar micro-expressões, pequenos desvios no olhar; é uma escolha que valoriza o ator e o texto mais do que o truque formal. Essa decisão ajuda a convencer o espectador de que a ameaça não está apenas na arma empunhada, mas nas histórias não ditas que se acumulam na sala. 

O trabalho de montagem, assinado por Ylva Garnert, acompanha essa sensibilidade. A edição opta por cortes que mantêm a continuidade da sufocação emocional: há retenção de silêncios, pausas que pesam mais do que qualquer diálogo explicativo. Em momentos de confronto, a montagem acelera, comprimindo respirações e dando urgência aos atos, mas nunca exagera em artifícios sonoros ou jump cuts que poderiam artificiar a crueza do confronto. Em outras palavras, a montagem ajuda a preservar o realismo dramático; ao mesmo tempo, essa mesma contenção reduz o impacto catártico de algumas reviravoltas — são escolhas que realçam a densidade dos personagens, porém também tolhem o espetáculo que o thriller poderia oferecer. 

No elenco, Evangelina Burton impõe o centro emocional do filme como Kara; sua interpretação alterna resignação, raiva e, em lampejos, uma lucidez fria que rende as melhores sequências do filme. Ao seu lado, Jennifer Aries, Anwen Bull e Mike Kelson constroem pequenos arquétipos com nuances: não são figuras planas, e Higo arrisca-se a manter uma ambiguidade moral inquietante — ninguém é inocente por completo, ninguém é vilão sem história. Dylan Baldwin, como o intruso Jack, entrega uma presença que mistura ameaça física e moral; há ali uma intenção de transformar o antagonista em espelho punitivo dos protagonistas, e Baldwin o faz sem cair na caricatura. No entanto, o texto nem sempre se esforça para equilibrar o tempo de cena entre os rostos; alguns arcos ficam subdesenvolvidos, e isso reduz o peso de certas revelações que deveriam sacudir a plateia com mais eficácia. 

O roteiro de Higo é, em boa medida, o centro do debate: deseja falar sobre culpa, recuperação, responsabilidade coletiva e a violência simbólica que se reproduz mesmo em espaços de cura. A escolha por diálogos que soam por vezes confessionais funciona para revelar camadas — memórias fragmentadas, contradições—mas, em outros pontos, o filme peca por explicitar demais ou por recorrer a soluções de trama que antecipam reviravoltas que poderiam ser mais surpreendentes se tivessem mais subtexto. Há mérito, porém, na maneira como a narrativa costura violência real e violência psicológica: o armamento é o detonador, mas a verdadeira escalada vem das palavras e do passado que prende os personagens uns aos outros. Essa ambivalência moral é um ponto forte do filme, porque evita maniqueísmos fáceis e força o espectador a uma posição desconfortável de julgamento.

O som e a trilha têm papel contido — e talvez por isso eficaz. A música assume um perfil econômico, quase fungindo como sublinhado atmosférico: momentos de respiração musical são curtos e pontuais, permitindo ao ruído do ambiente (um ventilador, passos, portas) ocupar espaço e criar tensão. Em várias críticas, observou-se que o score sublinha sem manipular, e essa moderação ajuda o filme a manter seu tom seco e tenso, sem cair no melodrama fácil. Ainda assim, para quem busca um clímax sonoro que amplifique o desfecho, a opção por sutileza pode desapontar. 

Do ponto de vista formal, Higo demonstra segura mão de diretor em seu primeiro longa — ou, no mínimo, em uma obra que soa como estreia promissora: ele controla o ritmo, extrai boas performances do elenco e sabe modular a intimidade e a ameaça. Mesmo assim, há oscilações de tom ao longo do filme: transições entre drama íntimo, thriller e, por vezes, franzidas de humor negro, geram uma instabilidade que alguns espectadores acharão estimulante e outros, desalinhadora. Em renda de montagem e direção de atores, o filme brilha; em densidade de argumentação dramática e na manutenção de suspense até o fim, perde pontos em consequência de suas escolhas minimalistas. 

Importa também colocar O Grupo em seu circuito: exibido em festivais como o FrightFest e vindo a público através de VOD e plataformas digitais, o filme encontrou na curta duração (71 minutos) e no formato conciso um caminho apropriado para circulação no mercado independente. Essa brevidade é vantagem — evita inflar o dispositivo — mas parte do público pode ficar com a sensação de que certas questões ficaram por resolver. Ainda assim, para quem aprecia filmes que apostam na tensão contida, na câmera observadora e nas performances de conjunto, o filme entrega mais do que promete em muitos momentos.

Há, por fim, um mérito ético-temático que convém destacar: Higo não trata a dependência como mera cor local ou como desculpa fácil para a ruindade de personagens. A adição de camadas de culpa coletiva e de consequências inesperadas faz com que o filme se coloque ao lado de debates sobre responsabilidade social e sobre como comunidades, mesmo as destinadas à cura, podem reproduzir padrões de condenação. Essa leitura moral torna O Grupo um thriller com consciência sociológica — nem sempre perfeito, mas sincero em suas intenções. Ao priorizar a crueza humana sobre os truques de gênero, Higo alcança um resultado onde o desconforto do espectador é proposital: somos convidados a assistir não só a um crime, mas a um tribunal íntimo, e sai-se da sessão sabendo que a violência ali testemunhada não é apenas física, é também um efeito de falhas coletivas preexistentes. 

Em resumo, O Grupo é um filme que respira mais por suas intenções do que por soluções plenamente realizadas: direção segura, fotografia que privilegia o íntimo, elenco que sustenta a fragilidade e a agressividade moral dos personagens, e um roteiro que navega com ambição entre denúncia social e thriller de sobrevivência. As escolhas de contenção formal — longas tomadas, montagem deliberada, trilha parcimoniosa — rendem sequências de alto impacto psicológico, embora também limitem o fulgor de um terceiro ato que poderia ter sido mais incisivo. Ainda assim, trata-se de uma obra que confirma William Higo como diretor a observar: tem falhas naturais de uma produção econômica, mas possui uma voz clara e um pulso cinematográfico que merecem ser acompanhados. Ao final, fica a sensação de um filme honesto, inquietante, que prefere ferir o espectador no silêncio do que no estrondo fácil — e essa opção, por vezes frustrante, é também a sua qualidade mais perene.

Nenhum comentário:

Postar um comentário