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agosto 14, 2025

Sorry, Baby (2025)

 


Título original: Sorry, Baby
Direção: Eva Victor
Sinopse: Depois de um evento trágico, Agnes se vê sozinha enquanto todos continuam suas vidas como se nada tivesse acontecido.


Há filmes que parecem feitos em laboratório para agradar a crítica especializada e o circuito de festivais: um tema caro ao momento (trauma e seus ecos), um tom entre o humor seco e o drama, um elenco de rostos queridinhos do indie, a chancela de produtores prestigiados e, claro, a assinatura da A24—o estúdio campeão em revestir projetos banais com verniz “cool”. Sorry, Baby, estreia de Eva Victor como roteirista-diretora-protagonista, encaixa-se nesse molde com precisão quase matemática. E, para mim, isso é justamente o problema: por trás da embalagem, há um filme vazio de conflito, liso como uma parede recém-pintada, que confunde modéstia de meios com pobreza de ideias. 

Comecemos pelo básico. A sinopse oficial é minimalista: “algo ruim aconteceu com Agnes; a vida segue… ao menos para todos à sua volta”. Agnes (a própria Victor) é uma professora de literatura que recebe a visita da amiga Lydie (Naomi Ackie), às vésperas de uma “grande novidade”. A história orbita esse reencontro e as derivações emocionais da protagonista, supostamente bloqueada desde um evento traumático envolvendo seu ex-orientador, Decker (Louis Cancelmi). Tudo muito alinhado, tudo muito “certinho”. O que falta? Cinema.

A questão central é que Sorry, Baby não traz conflito dramático minimamente robusto para sustentar sua premissa. A primeira metade instala uma rotina de conversas, piadas internas e silêncios que pretendem sugerir profundidade, mas não a constroem. O “passado” retorna não como força inexorável que empurra personagens a decisões, e sim como nota de rodapé repetida. A suposta catarse nunca se anuncia de modo orgânico: as cenas pela casa, o passeio ao mercado, o banho “contemplativo”, tudo se encadeia sem fricção, como se o roteiro tomasse qualquer obstáculo como ameaça ao decoro. Resultado: um registro morno de microgestos—o que poderia ser belo se houvesse tensão dramática latente—, aqui apenas estica o tempo e alisa arestas. O filme confunde a recusa ao melodrama com ausência de dramaticidade. 

Há quem leia nessa suavidade uma reimaginação do “trauma plot”: a recusa em mostrar o evento, a aposta na recuperação não linear, a amizade como coluna vertebral. Eu entendo o argumento, e admiro quando ele rende densidade. Mas, aqui, a opção pela elipse vira álibi para a falta de conflito—não há dilema ético agudo, não há escolha difícil a reconfigurar relações, não há sequer contradição interna consistente em Agnes. O que se apresenta como “subtexto” é, muitas vezes, texto que não ousa sê-lo. O filme contenta-se em ser “sobre” o tempo que passa. E é por isso que, para mim, ele se arrasta. Extremamente entediante, é o tipo de obra que dá vontade de desligar a TV o tempo todo; assistir vira uma pequena tortura, não por provocar, mas por desinteressar. 

No plano das interpretações, o projeto agrava seu problema. Eva Victor, que assina quase tudo, faz de Agnes uma presença continuamente contida. Em tese, seria um retrato de paralisia emocional; na prática, a performance se reduz a uma linha única de tom, com pouca variação de ritmo, gesto ou olhar. A contenção não encontra rachaduras—não há lampejos de descontrole, ironia que morda, um olhar que fira. Falta-lhe a instabilidade que torna habitável a interioridade de personagens “fechados”. E se a protagonista não pulsa, o filme também não. Crítica semelhante cabe a Naomi Ackie, cujo trabalho aqui se soma a outros em que a artificialidade do gesto grita mais alto que a organicidade da cena. Em Sorry, Baby, Ackie é, mais uma vez, o ponto mais baixo: suas entradas e saídas dramatúrgicas parecem sempre um pouco deslocadas, como se Lydie existisse num filme paralelo de afirmações gerais (“sou sua amiga”, “estou aqui por você”) que pouco conversam com a materialidade da situação. É impressionante como, em todas as obras das quais ela participa, me chama a atenção o descompasso entre intenção e efeito—uma atriz que, para mim, segue sublinhando emoções em vez de vivê-las.

O restante do elenco faz o que pode com pouco. Lucas Hedges resgata um calor discreto em cenas de vizinhança, e John Carroll Lynch confere dignidade a aparições rápidas, mas personagens orbitais sem arco claro acabam funcionando como pontos de apoio para uma protagonista que nunca se aventura além da linha de segurança. Louis Cancelmi, como o espectro de Decker, é menos personagem do que função narrativa: um nome citado, um olhar ao longe. A dramaturgia escolhe o campo da sugestão, mas não o habita com densidade suficiente para que a sugestão pese. 

Do ponto de vista técnico, é um filme polido. A fotografia de Mia Cioffi Henry assume uma paleta fria, com exteriores que pretendem dissolver a protagonista no espaço, e interiores organizados com uma mise-en-scène que privilegia o vazio, a lateralidade, os planos estáticos longos. Há momentos em que a composição encontra soluções interessantes—uma fachada que passa do dia à noite num plano só; a banheira, onde a água é quase um “campo neutro” emocional—, mas nada disso basta quando a encenação não se adensa. A montagem de Alex O’Flinn e Randi Atkins aposta no respiro e na cadência regular, o que poderia cavar significados se a progressão dramática existisse. Sem ela, o recorte temporal prolonga o inerte. A trilha de Lia Ouyang Rusli surge em tons econômicos, como sublinhado de estados de espírito, mas raramente cria contraponto ou fricção. É um trabalho competente, sim, contudo incapaz de animar o marasmo dramático. 

E aqui entra o papel da A24, estúdio que—com raras exceções—tem se especializado em transformar exercícios de tom em “eventos” de marketing. O pacotinho está lá: pôster minimalista, tagline com ar de sabedoria cotidiana, uma rodada de perfis na imprensa fashion e cultural celebrando o “feito” de se filmar em poucos dias, com orçamento enxuto e grande sensibilidade. O filme foi produzido por nomes respeitados como Barry Jenkins, Adele Romanski e Mark Ceryak (o selo Pastel), o que parece operar como aval de qualidade automática. Mas aval não é garantia: quando o conteúdo não resiste à luz do dia, todo o aparato soa como fetiche do “menor é mais”, quando na verdade é apenas menos. Mais uma porcaria da A24, o estúdio campeão em produzir todo tipo de filme péssimo em geral, com pouquíssimas exceções.

Há, claro, um outro discurso em circulação: as críticas elogiosas falaram em “reimaginar o trauma”, em “delicadeza devastadora”, em “comediodrama do ano”, com comparações a Reichardt e à sensibilidade indie atual. Não me incomoda a divergência—cinema vive dela—, mas me assusta o consenso fácil que confunde decoro com profundidade. Nada contra o tom baixo; tenho tudo contra o vazio que se passa por “sutileza”. O roteiro de Victor parece temer a palavra franca, o desequilíbrio, o feio. E, no entanto, é esse terreno instável que costuma gerar conflito e, portanto, cinema. Aqui, a limpeza formal esteriliza a experiência.

Quando o filme finalmente sugere mover-se, já esgotou nossa paciência. A visita de Lydie não desestabiliza Agnes; os encontros laterais não reorientam a trajetória; o “fantasma” do orientador não a empurra a nenhuma resolução que reconfigure sua vida. A estrutura elíptica, que poderia ser a casa do indizível, vira cortina de fumaça para a falta de decisões dramáticas. Se “algo ruim” aconteceu, falta ao filme algo bom: vontade de encarar o que esse “ruim” faz com as pessoas quando elas têm de escolher, agir, ferir e se ferir. Sem isso, o que resta é atmosfera—que, sozinha, não sustenta 103 minutos.

É inevitável comentar a recepção crítica positiva e as credenciais de festival. Tudo bem: há público para esse tipo de minimalismo emocional, e entendo quem se emocione com a promessa de “começar de novo”. Para mim, fica o incômodo de assistir a um produto tão seguro de seu próprio prestígio que nem se dá ao trabalho de arriscar. O minimalismo, aqui, não é método; é defesa. O pudor não é ética; é medo. E o medo, infelizmente, faz filmes entediantes.

Em suma: Sorry, Baby é a tradução perfeita de um cinema indie domesticado pela sua própria aura. Sem conflito de verdade, sem personagens que respirem fora do molde, com atuações que oscilam entre o inexpressivo (Victor) e o constrangido (Ackie), e uma carpintaria técnica correta porém anestesiada, o longa se arrasta como uma sessão de terapia sem catarse. Se a A24 queria mais um troféu de “sofisticação”, conseguiu. Se queria cinema vivo, perdeu. E eu, sinceramente, preferia ter desligado a TV.

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