Páginas

agosto 14, 2025

A Garota da Agulha (2024)

 


Título original: Pigen med Nålen
Direção: Magnus von Horn
Sinopse: Uma jovem grávida e recém-desempregada luta para sobreviver em Copenhague após a Primeira Guerra Mundial. Ela é acolhida por uma mulher carismática para ajudar a comandar uma agência de adoção clandestina. As duas formam um vínculo inesperado, até que uma descoberta repentina muda tudo.


A Garota da Agulha é daqueles filmes que lembram por que o rótulo “cinema dinamarquês” virou sinônimo de franqueza brutal, sem polimento, sem almofadas para amortecer a queda. Magnus von Horn (um sueco radicado na Polônia, mas aqui filmando em dinamarquês) parte de um caso real terrível para construir um conto de fadas às avessas, um pesadelo de época onde o luto, a fome e a culpa não são abstrações, e sim texturas. Em 1919, numa Copenhague pós-guerra, Karoline (Vic Carmen Sonne) é uma jovem operária grávida, abandonada e espremida por todos os lados; Dagmar (Trine Dyrholm), por sua vez, surge como porto seguro e empregadora, administrando um “serviço de adoção” clandestino. O que parece solidariedade, descobrimos, esconde um abismo — e Horn mergulha nele com rigor formal e uma precisão moral rara. O resultado: autêntico cinema dinamarquês, cru, potente, a vida real escancarada de forma maestral.

Desde a primeira cena, a imagem em preto e branco estabelece o pacto: nada aqui será confortável. O diretor de fotografia Michał Dymek desenha uma paleta de cinzas que parece exsudar carvão e névoa, como se as paredes respirassem miséria. É um preto e branco vivo, de contraste musculoso e gradações finíssimas que, paradoxalmente, tornam o horror palpável. Não por acaso, esse trabalho venceu o Golden Frog — o prêmio máximo do festival Camerimage, a meca mundial da direção de fotografia — com direito a menção especial ao próprio Horn. É um reconhecimento que explica muito do magnetismo visual do filme: a câmera de Dymek vibra entre o íntimo e o monumental, encostando-se à pele de Sonne para, no plano seguinte, abrir a rua inteira como uma catedral desmoronada.

Dymek compõe planos onde a luz natural parece sempre lutar para atravessar o ar pesado. Vidraças sujas riscam os rostos; o vapor dos banhos públicos desenha volumes fantasmáticos; interiores exíguos conduzem nossos olhos por labirintos de sombras. Não é mero “padrão festival de cinema”: há uma arquitetura dramática na fotografia. O foco cai, a respiração corta, e quando o quadro fixa em Karoline — quase sempre no limiar entre o pudor e a urgência — entendemos que a própria imagem é a agulha do título, perfurando a superfície para costurar aquilo que a sociedade preferiu rasgar. É uma fotografia impressionante, dessas que contam o filme sozinhas.

A trilha original de Frederikke Hoffmeier (conhecida no experimental como Puce Mary) age como ferrugem sonora. Em vez de sublinhar emoções, ela distrai os sentidos com drones, ruídos arranhados, metais que parecem ranger, cordas que respiram ofegantes. O desenho é áspero, por vezes industrial, e, junto às escolhas de silêncio, cria um regime de escuta que nos impede de “consumir” o horror com o conforto da trilha tradicional. Hoffmeier venceu prêmios europeus importantes com esse trabalho — e não surpreende: é música que pisa no limiar do diegético, quase um ruído do mundo, a ponto de você se perguntar se é a fábrica, o trem, a água do banho, ou a consciência de Karoline que está soando.

Se a superfície audiovisual é de altíssimo nível, o interior dramático não lhe fica atrás. O roteiro, escrito por Horn com Line Langebek, recusa a biopic direta sobre Dagmar Overbye — a famosa “ama-seca assassina” do início do século XX — e centra a nossa experiência em Karoline, uma escolha ética e cinematograficamente elegante. Em vez de fetichizar a serial killer, o filme observa as engrenagens de um mundo que permite que mães desesperadas sejam empurradas para soluções impossíveis. Essa perspectiva deslocada sustenta a força do filme: ao ver Dagmar pelos olhos de Karoline, o mal deixa de ser um “monstro excepcional” para tornar-se um resultado social viscoso, difícil de delimitar.

As atuações são impecáveis, e não há hipérbole nisso. Vic Carmen Sonne entrega uma Karoline de olhar vacilante e espinha resiliente, uma composição que recusa santidade e vitimização fáceis. Em seus silêncios, há cálculo; em suas imprudências, um desejo de afeto tão humano quanto perigoso. Trine Dyrholm, uma força da natureza do cinema nórdico, constrói Dagmar com empatia desestabilizadora: a personagem é afável, maternal, quase sedativa, e é justamente essa doçura (nunca caricata) que nos apavora quando o subtexto emerge. Em volta delas, Joachim Fjelstrup (como o patrão Jørgen que alterna charme e covardia) e Besir Zeciri (o marido de carne ferida e orgulho quebrado) compõem um coro masculino de tibieza e violência banal, reforçando a visão do filme sobre estruturas que abandonam as mulheres antes de abandonarem as crianças. 

É também um filme de montagem excelente. Agnieszka Glińska, montadora de cadência clínica, organiza o relato como uma febre que vai subindo sem que percebamos. O corte respira com o plano, e quando acelera, não o faz para “explicar”, mas para dar forma à avalanche interior de Karoline. O trabalho de som acompanha: portas que batem como veredictos, água que sussurra culpas, respiradas que fazem as vezes de percussão. A direção de arte de Jagna Dobesz, por sua vez, é um tour pela precariedade: a pobreza não é cenário de cartão-postal histórico, é materialidade — trincos, bacias, tecidos rasgados, corredores estreitos — que constrange o corpo e organiza o comportamento. 

A narrativa mantém-se envolvente até o último minuto porque Horn domina a arte do desvio e do falso porto. Num primeiro momento, acreditamos no conto de Cinderela industrial: a operária e o patrão, o brinde no salão, uma promessa de ascensão. Em seguida, o retorno do marido fardado e o recuo do amante desmontam essa fantasia com a frieza com que se apagam velas num quarto de pensão. Mais adiante, a “maternidade coletiva” de Dagmar insinua uma rede de proteção feminina; cedo entendemos que é uma teia. O filme costura micro-reviravoltas sem histeria — pequenos gestos que reorientam nosso julgamento e fazem o chão ceder de novo, e de novo. São plot twists magníficos justamente por não soarem como truque: eles nascem das escolhas éticas das personagens, não de uma mecânica de suspense barata. 

Há, ainda, um comentário histórico robusto. O caso Dagmar Overbye ajudou a catalisar reformas no registro civil dinamarquês; Horn alude a isso sem docudrama, preferindo encenar a atmosfera de uma nação exausta, com burocracias que gotejam, caridade que terceiriza culpas e um mercado clandestino de soluções “práticas” para problemas inomináveis. A justiça que chega, quando chega, é cinzenta como tudo o mais — e o filme resiste à catarse. Essa recusa ao alívio não é sadismo; é coerência. Ao tirar de nós a válvula de escape, A Garota da Agulha nos obriga a encarar que instituições, quando falham, não criam monstros do nada: apenas lhes oferecem método. 

Em termos de carreira, Horn mostra uma evolução impressionante. Depois de The Here After e Sweat, ele encontra aqui um equilíbrio raro entre severidade moral e sofisticação formal, granjeando respeito em Cannes (seleção oficial em competição) e uma rota de prêmios e indicações que o confirmam como um autor de mão firme — e Dymek, como um diretor de fotografia entre os mais inventivos de sua geração. A distribuição ampla pela MUBI em múltiplos territórios ajudou a obra a circular e a conversa se espalhou: não é um filme “difícil”; é um filme exigente, o que é bem diferente. 

Se há críticas à estética “bela demais” para a sordidez retratada — e algumas resenhas levantaram essa tensão —, penso que ela é parte do projeto: a beleza aqui não enfeita a miséria, ela a torna visível. Quando a luz encontra a fuligem, não a romantiza; revela, com nitidez quase indecente, o que preferiríamos manter fora de campo. É nessa fricção que o filme encontra sua ética: não transformar dor em espetáculo, mas também não escondê-la sob a conveniência de uma imagem “suja” genérica.

Tecnicamente, o filme é um relógio de inquietações: direção de atores milimétrica; mise-en-scène que organiza profundidades com uma precisão coreográfica (repare como portas e batentes repartem relações de poder no quadro); som que escreve subtexto; música que corrói bordas; fotografia que respira drama. E, sobretudo, uma condução de ponto de vista que nunca nos abandona. Mesmo quando Dagmar ocupa o plano, a experiência continua sendo de Karoline — o que nos impede de consumir a vilania como entretenimento e nos obriga a pensar em estruturas. É cinema de responsabilidade.

Quando os créditos sobem, fica uma sensação dupla: a de termos visto um thriller gótico de altíssima carpintaria e a de termos sido testemunhas de uma confissão social tardia. A Garota da Agulha não quer a nossa piedade; quer a nossa atenção. E a conquista com um domínio raro de forma e afeto. Autêntico, cru, potente, escancarado — e, ao mesmo tempo, sofisticado o suficiente para que cada plano, cada ruído, cada gesto, funcione como uma picada que desperta, não como um choque que entorpece. Envolvente até o último minuto, é um daqueles filmes que, ao sairmos da sessão, nos faz tocar o próprio pulso para checar se ainda estamos inteiros. Se cinema é ferida e cura, Horn encontrou aqui a profundidade certa da lâmina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário