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agosto 04, 2025

O Grande Silêncio Branco (1924)

 


Título original: The Great White Silence
Direção: Herbert G. Ponting
Sinopse: Em 1910 a Expedição Britânica - Antárctica, comandada pelo Capitão Robert F. Scott, embarca de Lyttelton, Nova Zelândia, na missão de se tornarem os primeiros a alcançar o Polo Sul.


O cinema nasceu curioso. Desde seus primeiros passos, não tardou a querer conhecer o mundo, documentar o exótico, registrar o invisível. Em 1924, Herbert G. Ponting legou à história O Grande Silêncio Branco (The Great White Silence), uma das obras mais singulares do início do século XX — não por seu ritmo, enredo ou virtuosismo técnico, mas pelo feito inusitado de ter sido a primeira grande filmagem realizada em meio às hostilidades intransigentes da Antártica. O filme, que só ganhou exibição comercial muitos anos após sua produção, é ao mesmo tempo um documento precioso da Expedição Terra Nova e um exemplo emblemático das ambiguidades e limites do documentário silencioso britânico em seus primórdios.

Herbert G. Ponting, fotógrafo oficial da British Antarctic Expedition (1910–1913), liderada pelo Capitão Robert Falcon Scott, empreende aqui um trabalho hercúleo: filmar, com câmeras de manivela e chapas fotográficas, a vastidão branca e o cotidiano de uma missão condenada desde o início por seus próprios excessos e crenças imperialistas. A expedição tinha como objetivo atingir o Polo Sul geográfico — e foi, de fato, até lá —, mas o feito histórico que os britânicos buscavam eternizar terminou eclipsado pela vitória mais eficiente e silenciosa do norueguês Roald Amundsen. Ponting, claro, quase não menciona isso. Há uma única referência à conquista norueguesa, acompanhada de uma foto de Amundsen, jogada no meio do rolo com a sobriedade tipicamente britânica de quem, na verdade, ainda se acredita dono da glória.

Tecnicamente, O Grande Silêncio Branco é uma proeza — mas uma proeza desigual. O que mais impressiona é sua ousadia em levar a lente cinematográfica para os confins do planeta, capturando imagens com extremo rigor estético e surpreendente variedade de planos. Há cenas de pinguins que parecem tiradas de uma peça de teatro expressionista, tamanha é a composição do quadro; há detalhes na geada que lembram texturas de carvão sobre papel; e, sobretudo, há uma engenhosidade notável na forma como Ponting recorre a miniaturas para representar partes da expedição. Quando as câmeras não podiam acompanhar os homens rumo ao interior do continente gelado, o diretor apelava a pequenas encenações com bonecos e maquetes, que, no preto e branco granulado da película, tornam-se convincentes, funcionais, até didáticas. A ilusão criada é de uma fluidez inesperada, com cortes bem encadeados que conduzem o olhar do espectador de forma fluida — mesmo que, no geral, o ritmo do filme seja de fato lento, como uma travessia no trenó.

Essa lentidão, diga-se, não é apenas uma questão de época. Ainda que seja compreensível que um filme de 1924 tenha outra cadência narrativa, O Grande Silêncio Branco sofre de um problema de foco dramático em sua primeira metade. Ponting parece hesitante entre dois caminhos: ora filma como se estivesse produzindo um poema visual sobre a natureza congelada — com extensas passagens contemplativas da paisagem antártica, da fauna exótica e da vida na base —, ora tenta estruturar um relato heroico da expedição de Scott. Durante quase 40 minutos, o filme parece um catálogo etnográfico de blocos soltos, que não se coesiona de imediato com o fio narrativo que de fato interessa: a luta dos homens contra o tempo, a neve, o vento e seus próprios limites humanos.

Se a parte dedicada aos pinguins é curiosa do ponto de vista histórico — animais considerados estranhíssimos à época, dignos de admiração quase mágica —, também é verdade que se estende mais do que deveria, criando uma sensação de pausa desnecessária dentro de um filme que já tem suas dificuldades estruturais. É preciso fazer o esforço de imaginar o quanto essas imagens encantavam os olhos do público da década de 1920, e isso ajuda a compreender a insistência quase amorosa de Ponting em mostrar pinguins se debatendo e focas nadando. Mas para um público atual, mais acostumado ao ritmo narrativo e ao impacto audiovisual, esse trecho pesa como um bloco de gelo derretendo lentamente.

A partir da segunda metade, entretanto, o filme encontra maior direção. Passamos, enfim, ao núcleo mais dramático: a travessia de Scott e seus homens rumo ao Polo Sul, enfrentando temperaturas brutais, escassez de suprimentos e o próprio fracasso da missão. Ainda que Ponting não tenha acompanhado o grupo até os estágios finais — parte de seu material é, como já dito, reconstruído em miniaturas ou baseado em registros —, a montagem consegue transmitir certa tensão. O uso da música (adicionada em exibições posteriores), aliado ao comentário intertítulos sóbrios e respeitosos, confere ao filme um peso trágico inevitável. É impossível não sentir o tom elegíaco quando lemos, nos cartões de texto, as datas em que os exploradores foram sucumbindo, um a um, à medida que voltavam do Polo.

Mas talvez o maior problema seja justamente o que o filme não mostra: o desfecho emocional da tragédia. Para os que não conhecem a história da conquista do Polo Sul, o que vemos é um anticlímax diluído. Scott e seus homens chegam tarde demais, exaustos, e encontram uma bandeira norueguesa já fincada no ponto mais ao sul do planeta. Nada disso é mostrado em grande detalhe — e tampouco a frustração do grupo, ou mesmo o caráter heróico-melancólico da viagem de retorno, quando todos acabam morrendo, isolados e congelados, poucos dias da base. O filme simplesmente se encerra com homenagens discretas e um certo patriotismo enlutado, como quem prefere preservar a dignidade do Império do que expor sua derrota.

Esse viés nacionalista é, aliás, uma das marcas mais visíveis da produção. A narrativa de Ponting é fortemente britânica em sua estrutura: valoriza o sacrifício, o silêncio diante da tragédia, o heroísmo contido. A figura de Scott emerge quase como um mártir do progresso e da ciência, e mesmo a falha da missão é transformada em glória póstuma. Nada de recriminações à liderança, nada de questionamentos logísticos ou autocríticos — a história da expedição é tratada como uma epopeia inevitável, conduzida pela honra e pela coragem. Essa abordagem, compreensível no contexto do pós-guerra britânico e da aura imperial da época, hoje ressoa com certa artificialidade, deixando de lado aspectos mais humanos e menos solenes dos participantes.

Por outro lado, O Grande Silêncio Branco cumpre um papel histórico incontornável: é o primeiro grande filme documental da Antártica. Antes de David Attenborough, antes de Jacques Cousteau, antes de Werner Herzog e sua estranheza polar em Encontros no Fim do Mundo, foi Ponting quem primeiro levou uma câmera para captar a dureza do frio e a fragilidade do homem frente ao nada. Há ali um sentido poético não-intencional que atravessa o filme: quanto mais o diretor tenta celebrar a conquista humana, mais a tela mostra o quanto somos pequenos, frágeis e impotentes diante da natureza extrema. O gelo, o vento e a ausência de vida gritam mais alto do que qualquer bandeira.

Na restauração conduzida pelo British Film Institute (BFI) em 2011, com trilha sonora original composta por Simon Fisher Turner, O Grande Silêncio Branco ganhou nova vitalidade. A música ajuda a dar coesão dramática a trechos que originalmente dependiam apenas de intertítulos e imagens, tornando mais fluido o percurso emocional do espectador. Ainda assim, é um filme que exige paciência — e que talvez nunca tenha sido pensado exatamente como cinema para o grande público, mas como testemunho visual de uma epopeia para os arquivos da história nacional.

No final das contas, O Grande Silêncio Branco é mais valioso por aquilo que representa do que por aquilo que entrega em termos cinematográficos. É um documento, uma relíquia, uma cápsula do tempo que nos mostra não apenas uma expedição ao Polo Sul, mas também a mentalidade de uma época, o olhar de um Império sobre si mesmo, e o nascimento de uma estética documental ainda em formação. Atravessá-lo é como andar sobre o gelo: cada passo é incerto, mas o percurso, mesmo que árduo, revela um horizonte de descobertas.

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