Resistentes, dirigido e roteirizado por Patrícia Lobo, estreou em junho de 2024 em sessão gratuita no Cine LT3, em Perdizes, São Paulo, com forte presença da própria cineasta e moradores dos bairros retratados. Com duração de 86 minutos, o longa percorre os bairros da Zona Oeste – Pompeia, Perdizes, Vila Anglo, Vila Romana – para documentar a memória e as formas de resistência dessas comunidades diante do processo de verticalização crescente.
O roteiro adota uma abordagem intimista: moradores, comerciantes, donos de botecos narram experiências pessoais marcadas por afeto, perda e mudança urbana. Essa aproximação das vozes da comunidade é a maior força da obra – no entanto, o foco bastante localizado – quase exclusivamente da Zona Oeste – limita a abrangência temática. Falta uma voz mais diversificada, plural, capaz de dialogar com o país todo.
Apesar disso, a montagem conjugando cenas de convivência nos barzinhos com trechos de Tempos Modernos de Chaplin ganha força simbólica, sugerindo a tensão entre memórias populares e o avanço impessoal do concreto. Todavia, esse dispositivo se repete, cansando com o tempo.
Tecnicamente o documentário é bem realizado: fotografia produzida de forma sensível à luz natural dos bairros, ritmo de edição que respeita pausas reflexivas, mixagem sonora que privilegia sons urbanos e voz dos depoentes. A inserção de fala de especialistas (urbanista Marcia Crespo, economista Marcel Steiner, vereador em nome da prefeitura) dá a sensação de profundidade, ainda que apareçam pouco e sem conflito real.
Existe um equilíbrio na condução das entrevistas – enquadramentos médios, plano e contraplano que valorizam o rosto dos moradores. Essa produção técnica demonstra que o Brasil, em termos de documentários autorais, ainda se destaca quando bem sustentado pelas mãos do cineasta.
O núcleo temático recai sobre a verticalização como projeto capitalista que ignora a memória afetiva da vizinhança. Mas o tom político do documentário é evidente: há uma crítica aberta ao papel de empreiteiras e ausência de diálogo com moradores. Essa crítica, por si só, não seria problema – o problema é a falta de contraponto político. Não há vozes que defendam a verticalização como progresso urbano; todo debate vem em forma de resistência contra ela.
Isso reforça um padrão dos documentários contemporâneos brasileiros, que caminham quase sempre com viés político evidente — quase sempre alinhados à esquerda urbana e progressista. Essa tendência parece estar se tornando a norma: dificilmente hoje se encontra documentário brasileiro sem cunho político, sem declarar um campo ideológico. Onde estão os documentários mais “neutros”, equilibrados, que circularam nas décadas de 1990 e 2000, quando ainda havia espaço para olhar sem agenda explícita?
Uma das partes mais desconcertantes é ouvir moradores de São Paulo exibirem opiniões que me lembram muito as dos gaúchos de Porto Alegre com quem convivi por tanto tempo: uma resistência ao progresso, uma ideia de que qualquer mudança urbana maciça ameaça diretamente a vida deles. É comum ouvir depoentes afirmar que “tudo vai acabar com a verticalização”. Essa visão retrógrada contrasta fortemente com os desafios de mobilidade, habitação e acessibilidade que deveriam ser parte do diálogo urbano atual. A impressão é que, para esse segmento social, qualquer progresso representa uma ruína existencial.
Esse estranhamento reforça a sensação de que o documentário não estimula um debate mais aberto – apresenta a resistência como heroica e a modernização como ameaça absoluta. Falta nuance.
O ritmo é meditativo, com planos demorados mostrando fachadas, bares, cafés, ruas tomadas por torres em construção. Para espectadores com paciência e interesse no microcosmo paulistano, há emoção e afetividade. Mas para observadores externos ou menos ligados ao local, o filme pode parecer lento, repetitivo e limitado ao âmbito local. A falta de registros mais amplos (afastamentos da cidade, inserções históricas mais longas, fontes diversas) torna o envolvimento emocional restrito.
Ainda que a construção narrativa e a linha editorial se frustrem em objetividade, não se pode negar a habilidade técnica da direção. A montagem respeita o espaço íntimo dos depoentes, a câmera se insere discretamente, a sonoplastia urbana constrói atmosfera e ritmo. A documentação visual da verticalização é precisa e imageticamente impactante. A direção demonstra competência: é possível ver potencial nos registros, enquadramentos e escolhas estéticas, ainda que o recorte ideológico desequilibre o discurso.
Em resumo: seu valor maior está na forma, não no conteúdo. A técnica ainda impressiona. O discurso, porém, é unilateral e anacrônico. Esperava-se que um título como esse pudesse abrir espaço para debate plural sobre a verticalização, sobre memória urbana e modernização — mas o filme apresenta apenas uma face da moeda. Resta admirar a condução técnica e sentir frustração com o excesso de viés ideológico.
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